"Ler é sonhar pela mão de outrem. Ler mal e por alto é libertarmo-nos da mão que nos conduz. A superficialidade na erudição é o melhor modo de ler bem e ser profundo."
Bernardo Soares
Livro do Desassossego

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

O Livro de Cesário Verde - nos 159 anos do seu nascimento


Cesário Verde nasceu em Lisboa, em 1855. Morreu passados apenas 31 anos, e nunca publicou nenhum livro. Contudo, será um seu amigo, Silva Porto, que irá fazer uma coletânea das suas poesias, e publicar o seu livro em 1901.




E um autor dado na escola. Poemas como “Um Bairro Moderno”, “A Débil” ou “Cristalizações fazem parte dos manuais. Contudo, apenas ao ler o livro (edição completa, pois há muitos apenas com edições parciais) aparecem outros igualmente bons como “Flores Velhas” ou “Noite fechada”.  É um poeta do séc. XIX, sem dúvida, marcado pelo realismo. A sua linguagem é acessível, clara e cativadora. Para quem gosta de poesia, é um autor a não deixar de ler. 

FRÍGIDA 
Balzac é meu rival, minha senhora inglesa! 
Eu quero-a porque odeio as carnações redondas! 
Mas ele eternizou-lhe a singular beleza 
E eu turbo-me ao deter seus olhos cor das ondas. 

II 
Admiro-a. A sua longa e plácida estatura 
Expõe a majestade austera dos invernos. 
Não cora no seu todo a tímida candura; 
Dançam a paz dos céus e o assombro dos infernos. 

III 
Eu vejo-a caminhar, fleumática, irritante, 
Numa das mãos franzindo um lençol de cambraia!... 
Ninguém me prende assim, fúnebre, extravagante, 
Quando arregaça e ondula a preguiçosa saia! 

IV 
Ouso esperar, talvez, que o seu amor me acoite, 
Mas nunca a fitarei duma maneira franca; 
Traz o esplendor do Dia e a palidez da Noite, 
É, como o Sol, dourada, e, como a Lua, branca! 

Pudesse-me eu prostar, num meditado impulso, 
Ó gélida mulher bizarramente estranha, 
E trêmulo depor os lábios no seu pulso, 
Entre a macia luva e o punho de bretanha!... 

VI 
Cintila ao seu rosto a lucidez das jóias. 
Ao encarar consigo a fantasia pasma; 
Pausadamente lembra o silvo das jibóias 
E a marcha demorada e muda dum fantasma. 

VII 
Metálica visão que Charles Baudelaire 
Sonhou e pressentiu nos seus delírios mornos, 
Permita que eu lhe adule a distinção que fere, 
As curvas da magreza e o lustre dos adornos! 

VIII 
Desliza como um astro, um astro que declina, 
Tão descansada e firme é que me desvaria, 
E tem a lentidão duma corveta fina 
Que nobremente vá num mar de calmaria. 

IX 
Não me imagine um doido. Eu vivo como um monge, 
No bosque das ficções, ó grande flor do Norte! 
E, ao persegui-la, penso acompanhar de longe 
O sossegado espectro angélico da Morte! 

O seu vagar oculta uma elasticidade 
Que deve dar um gosto amargo e deleitoso, 
E a sua glacial impassibilidade 
Exalta o meu desejo e irrita o meu nervoso. 

XI 
Porém, não arderei aos seus contactos frios, 
E não me enroscará nos serpentinos braços: 
Receio suportar febrões e calafrios; 
Adoro no seu corpo os movimentos lassos. 

XII 
E se uma vez me abrisse o colo transparente, 
E me osculasse, enfim, flexível e submissa, 
Eu julgara ouvir alguém, agudamente, 
Nas trevas, a cortar pedaços de cortiça! 

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